quinta-feira, 16 de abril de 2009

O desapego

Voltas e voltas que ainda me deixo (e quero) deambular no turbilhão de pensamentos que me enche cada instante.

É domingo de Páscoa e concerteza que tenho outros programas bem mais interessantes do que passar uma tarde na sala de visitas do hospital! Talvez nem tenha, sei lá eu…

Espero pelas 14h00 que me permitem a entrada. Hoje é “à vontade” vai respondendo o porteiro ao pedido de senhas. Subo até ao quarto… A minha avó… tão diferente daquele tempo em que gritava na esquina da Junta de Freguesia e a plenos pulmões “ ó Joãaaaaaaoooooo, o almoço tá na mesa”. Conhecia tão bem aquele grito… E eu nem me permitia fazer como alguns deles que respondiam aos chamados dos progenitores com um “ já vou… mais cinco minutos”. Eu não! Saía apresado do ringue ainda a esfregar as calças esbranquiçadas do saibre que me valiam sempre uma repreensão “ai João quando a tua mãe vir essas calças”. Mas a escova preta sempre tranquila em cima do móvel “na casa de fora” esperava o seu momento de actividade e à medida que baloiçava agressivamente sobre os meus joelhos resolvia alguns problemas e acabava sempre por atenuar o pó e o ralhete da minha mãe.

Manténs esses mesmos olhos azuis tão intensos quanto a tua bondade que uma vez ainda me valeram um “ ai João se tu tivesses os olhos como os da tua avó eras um borracho”… Era mas não sou, não é? Na altura isto ainda me marcou. Mas hoje que se dane a opinião das raparigas!

A tua cara está desfigurada pelo trabalho, pelas ralações, pelas percas, pelas lutas que quiseste travar sempre para proteger os teus. Pelos 87 anos a viver para os outros. Hoje não me conheces, nem tão pouco o meu nome. Apresso-me a dizer-te quem sou. “ O melhor de todos os teus netos Avó, sou o João”. Não te convences que seja o melhor, mas respondes de pronto: “ os meus netos, gosto tanto dos meus netos “…. e pronto, bastava isto para que qualquer outro programa de domingo à tarde se tornasse banal comparado com a visita ao teu quarto de hospital! Mas mesmo assim tu continuas a querer justificar a minha decisão de te visitar: “Gosto tanto que estejam aqui… os meus netos” Essa frase ecoa como a sirene dos bombeiros que os faz correr das camaratas e a mim agita-me todo. A custo, contenho as lágrimas de assentimento perante tal desabafo. É bem verdade, o quanto tu gostavas dos teus netos. Talvez ainda gostes, mas já nem te lembras. Ou talvez te lembres e nós não te saibamos escutar.

Cada qual tem a sua forma de lidar com a doença, com as percas… serei eu obtuso e antiquado, mas deixo escapar um revolto “quanto desapego!” É domingo de Páscoa e as visitas são menos do que eram ontem. Vislumbra-se do corredor algumas portas entreabertas que deixam aparecer as camas rodeadas de meia dúzia de familiares e amigos, mas isso parece-me pouco.

Onde estão os outros? Tu viveste para os teus filhos e para os teus netos, como provavelmente muitos dos teus colegas de hospital… onde estão eles hoje? O desapego… cresce no meu pensamento como um monstro de tentáculos assustadores. O dinheiro está cada vez mais caro e as pessoas valem pouco, cada vez menos. Tal como as relações, tal como a Amizade e o Amor. Aprendi à minha custa isso, mas porra, não me consigo conformar.! Isso perturba-me, enoja-me até! “Beijoca, Avó, até amanhã”. “ Até amanhã, filho, e obrigado por teres vindo”.

2 comentários:

  1. Como eu compreendo... Talvez por ter passado por isso... e ainda está tão presente!! Sabes, aprendi a sorrir, mesmo nos momentos mais difíceis. E o meu conforto, é saber que o meu avô e a minha avó estão algures a olhar por mim e a memória deles jamais será apagada.

    Fica bem!

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  2. Obrigado pelo comentário... sim concerteza q estarão em qq lado a olhar por ti e a ver como vences com empenho as tuas lutas....

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