quarta-feira, 22 de abril de 2009

Eu chamei-te sem que me ouvisses e tu estavas lá sem que eu te encontrasse

Afinal ninguém morreu e o sol até nasceu… penso eu hoje de manhã, agora que te perdi de vez.
Os feixes de sol invadem as águas furtadas, despertando e aquecendo os minutos iniciais do dia. “Sou um gajo de rotinas”… como em todas as outras manhãs, peço a companhia da TV que vai alertando a meteorologia, o trânsito e as novas do dia.

Saio apressado, como sempre e penso “ganho uns minutinhos no caminho”. Hoje o caminho é mais sinuoso, e escorrem em lágrimas as memórias da minha “outra vida”. "Se eu pudesse voltar atrás"… se eu pudesse voltar atrás faria tudo outra vez respondo-me prontamente.

Seria impossível descrever todos os apaixonantes momentos que passei a teu lado, a praia (o teu porto de abrigo) a manta aconchegante do sofá, o saboroso morango dos teus lábios, os teus dedos finos, compridos e delicados, a luminosidade estarrecida do teu sorriso, as primeiras férias, os passeios de inverno…

Hoje acutila a dor saber que o nosso fim podia ter sido diferente, podia nem sequer ter havido fim! Volto a pensar: "Eu faria tudo na mesma."

Não, não senti raiva de ti como me disseste um dia. Senti raiva de te ter pedido colo e de não me teres conseguido dar. Senti raiva de perceber que me estavas a deixar ir e que não eras capaz de me apertar. E eu pedi-te tanto. E eu queria tanto. Só queria que me acorrentasses, que me escutasses, que me deixasses chorar, como tantas vezes tu choraste no meu colo. Só queria que a tua vida não fosse o nosso centro. Talvez sinta raiva ou ciúme das imensas leituras, pesquisas, formações e pós-graduações que fizeste no afã de seres das melhores na tua actividade. Hoje és das melhores e eu sei que sim. Sinto orgulho de ti e também sinto ciúme e frustração que não te preocupasses tanto em ser das melhores a conhecer-me e escutar-me.

Habituaste-te – como todos – a esperar de mim a determinação, as decisões, as tomadas de posição, a certeza, a confiança, a atitude… habituaste-te como todos os outros a mostrar má cara sempre que as decisões não eram correctas, mas nunca tiveste coragem de me fazer ver que estava enganado e eu sei que foi com medo de me magoar. Habituaste-te como os outros… mas tu não eras os outros. De ti eu precisava o oposto. Precisava que tomasses decisões, que me levasses nas tuas asas. Que me mostrasses os erros, que tomasses posições. Não! Nem “tudo o que tu fizeres para mim está bem”, como me insististe em dizer tantas vezes que te pedi opinião. Precisava que fosses confiança e atitude para me guiares na estrada quando os caminhos eram dúbios, o sol encadeava e o nevoeiro ocultava. Pedi-te tanto!

Eu chamei-te sem que me ouvisses e tu estavas aí sem que eu te encontrasse!

Mas isso eu precisava ontem. E esperei por um sinal que contrariasse o teu encolher de ombros à pergunta: “ Tens a noção que isto é mesmo o ponto final?”

Pelo menos até as 23h59 esperei, porque hoje… hoje ninguém morreu e o sol até nasceu…

“E agora?” “Ela é uma miúda espectacular e encontrará alguém com quem será feliz e eu também”.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O desapego

Voltas e voltas que ainda me deixo (e quero) deambular no turbilhão de pensamentos que me enche cada instante.

É domingo de Páscoa e concerteza que tenho outros programas bem mais interessantes do que passar uma tarde na sala de visitas do hospital! Talvez nem tenha, sei lá eu…

Espero pelas 14h00 que me permitem a entrada. Hoje é “à vontade” vai respondendo o porteiro ao pedido de senhas. Subo até ao quarto… A minha avó… tão diferente daquele tempo em que gritava na esquina da Junta de Freguesia e a plenos pulmões “ ó Joãaaaaaaoooooo, o almoço tá na mesa”. Conhecia tão bem aquele grito… E eu nem me permitia fazer como alguns deles que respondiam aos chamados dos progenitores com um “ já vou… mais cinco minutos”. Eu não! Saía apresado do ringue ainda a esfregar as calças esbranquiçadas do saibre que me valiam sempre uma repreensão “ai João quando a tua mãe vir essas calças”. Mas a escova preta sempre tranquila em cima do móvel “na casa de fora” esperava o seu momento de actividade e à medida que baloiçava agressivamente sobre os meus joelhos resolvia alguns problemas e acabava sempre por atenuar o pó e o ralhete da minha mãe.

Manténs esses mesmos olhos azuis tão intensos quanto a tua bondade que uma vez ainda me valeram um “ ai João se tu tivesses os olhos como os da tua avó eras um borracho”… Era mas não sou, não é? Na altura isto ainda me marcou. Mas hoje que se dane a opinião das raparigas!

A tua cara está desfigurada pelo trabalho, pelas ralações, pelas percas, pelas lutas que quiseste travar sempre para proteger os teus. Pelos 87 anos a viver para os outros. Hoje não me conheces, nem tão pouco o meu nome. Apresso-me a dizer-te quem sou. “ O melhor de todos os teus netos Avó, sou o João”. Não te convences que seja o melhor, mas respondes de pronto: “ os meus netos, gosto tanto dos meus netos “…. e pronto, bastava isto para que qualquer outro programa de domingo à tarde se tornasse banal comparado com a visita ao teu quarto de hospital! Mas mesmo assim tu continuas a querer justificar a minha decisão de te visitar: “Gosto tanto que estejam aqui… os meus netos” Essa frase ecoa como a sirene dos bombeiros que os faz correr das camaratas e a mim agita-me todo. A custo, contenho as lágrimas de assentimento perante tal desabafo. É bem verdade, o quanto tu gostavas dos teus netos. Talvez ainda gostes, mas já nem te lembras. Ou talvez te lembres e nós não te saibamos escutar.

Cada qual tem a sua forma de lidar com a doença, com as percas… serei eu obtuso e antiquado, mas deixo escapar um revolto “quanto desapego!” É domingo de Páscoa e as visitas são menos do que eram ontem. Vislumbra-se do corredor algumas portas entreabertas que deixam aparecer as camas rodeadas de meia dúzia de familiares e amigos, mas isso parece-me pouco.

Onde estão os outros? Tu viveste para os teus filhos e para os teus netos, como provavelmente muitos dos teus colegas de hospital… onde estão eles hoje? O desapego… cresce no meu pensamento como um monstro de tentáculos assustadores. O dinheiro está cada vez mais caro e as pessoas valem pouco, cada vez menos. Tal como as relações, tal como a Amizade e o Amor. Aprendi à minha custa isso, mas porra, não me consigo conformar.! Isso perturba-me, enoja-me até! “Beijoca, Avó, até amanhã”. “ Até amanhã, filho, e obrigado por teres vindo”.